quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Eu sou

Eu sou aquela que você não viu nascer
Sou a morte e a vida
O amargo da língua,

Sou a tua mãe e tua prima,
Tua esposa e também inimiga
Sou a tua embriaguês
O teu tacto e o teu faro
Sou a resposta e a dúvida,
O asco e o perfume

Sou a tua bicicleta e a tua bengala,
O cigarro que o teu pulmão inala
Sou o gelo, o fogo,
O filho, o beijo quente
Eu sou o sexo, o amor
Sou o ópio, a erva, o odor
Sou a senhora e seu senhor
Sou cobra, camaleão,
Sou a rosa e seu botão,

Sou o cravo, a bola,
A briga, a violência
Sou a pérola dada aos porcos
Eu sou o verão, o inferno
O céu e o etéreo

Sou faca de dois gumes
Sou aço, sou ouro
Sou bota de couro

Eu sou o sertão,
A amazónia,
Sou o jacaré
Sou a macedónia
Sou Juliana, Mariana
José, sou Francisco,
Carlitos e Mané

Eu sou a doença, a cólera profunda
A tinta do cabelo e o cabelo também
Eu sou a sede, a água, o braço, a unha, o espelho, a rocha, a lupa

Sou Flamengo, sou São Paulo
Sou Janeiro até chegar Dezembro
Eu sou setembrista e Marcelista,
Sou Caetano e Buarque,
Sou Veloso e Joana D’arc
Sou o Ruca, sou o Noddy e o Lula tambérm

Sou a rapidez e a vagareza
Sou o paradoxo e também a proeza
Sou a vergonha, a sátira
Sou vagabunda, sou comportada
Sou leviana
Sou reta, sou torta, paralela,
Sou bicetriz e imperatriz
Sou poética, sou vulgar
Sou culta, impopular
Sou descida, sou subida
Sou o tudo e o nada me guarda

Sou a inércia e a dança
Sou o mar e o espaço,
Estrela do céu e do mar também
Sou toda gente e não sou ninguém

Sou triste e feliz
Professora e aprendiz
Sou música e o silêncio
Sou o apito, o grito, a primeira e a última
Sou personagen e também sou real
Sou a capoeira e os escravos e também o carnaval

Sou a missa do galo,
O padre, o ateu,
Sou o natal e a aversão à datas
Sou o retrato, o pobre, o rico, o cheiroso e o fedido
Sou Patrício. Sou Judeu
Sou tudo isso!
E ainda sim,
ninguém sabe quem sou eu


(Poema da Obra "Era uma vez a Poesia..." de Marcella Reis pela Chiado Editora)













2 comentários:

  1. Nossa,que belo poema!!!eu não entendo mt bem de figuras de linguagem, mas vi que vc não usou apenas a antítese, pois nem sempre uma coisa se opõe à outra né? há antítese, mas há tb, não estou certa do que vou dizer, um certo paradoxo, pois vc utiliza, na construção do poema, afirmações que se contrapõe a outras sem que necessariamente haja uma lógica entre os elementos relacionados. Não sei que deu pra entender, mas queria saber se vc já leu algum poeta que tenha este mesmo estilo, ou se é algo que vc mesma criou, se for, pode ser uma inovação poética.

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    1. É um poema que eu também gosto muito. Há várias figuras de estilo nele mesmo. Usei bastante antíteses para mostrar o quanto o Sujeito poético é paradoxal e controverso a si mesmo e também, como você mesma sublinhou, o paradoxo. Também abusei das repetições "Eu sou" como se o poeta quisesse se afirmar, talvez por uma insegurança que ele não queira transparecer dele mesmo para as outras pessoas e por isso ele se edifica como um tudo e como ninguém.
      Nunca li poetas com este estilo, este modo de escrever é mesmo uma particularidade minha. Eu também acho que seja uma inovação poética. Obrigada Day, compreendi perfeitamente o que você quis dizer e ao contrário do que você pensa, você entende muito sim de figuras de linguagem, pois captou definitivamente o que eu quis transparecer no poema acima.

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